Amizade e loucura no Eva Herz - Lionel Fischer
"O metalúrgico Tuco, pouco antes de sua aposentadoria, abandona o trabalho para viver seu grande sonho: tornar-se cantor. Ridicularizado pelos amigos em função de uma fracassada apresentação que fizera - segundo ele, os músicos que o acompanharam não foram capazes de acertar o tom - e pressionado pela família, Tuco se tranca em um porão. Nesse refúgio ele ensaia sozinho enquanto aguarda a chegada dos violonistas, o acompanhamento prometido por um conhecido. Mas quem bate à porta é Sebastian, um velho amigo cuja missão é trazê-lo de volta à razão.
Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima explicita o contexto de "O acompanhamento", de autoria de Carlos Gorostiza. Escrita em 1981 e considerada uma das obras argentinas mais relevantes sobre o tema da amizade, a peça chega à cena (Teatro Eva Herz) com tradução e adaptação de Daniel Archangelo e Wilmar Amaral, direção de Archangelo e elenco formado por Wilmar Amaral (Tuco) e Roberto Frota (Sebastian).
Muitas são as razões que podem levar alguém a perder progressivamente a razão. No caso de Tuco, além do mencionado fracasso artístico, há também que se levar em consideração o fato de não mais suportar seu trabalho em uma fábrica. E como um conhecido lhe diz (por piedade ou galhofa, jamais se chega a saber) que enviará à sua casa violonistas competentes, o contexto alienante se materializa e Tuco passa realmente a acreditar que sua desforra artística se resume tão somente a uma questão de tempo.
A chegada de Sebastian sugere que esse amargo quadro pode ser alterado, pois ele se empenha com toda a potência de seu amor e amizade para convencer o amigo de que os violonistas não virão e de que ele precisa retomar sua atividades normais. Mas é tudo inútil e finalmente Sebastian se convence de que nada lhe resta a não ser simular que acredita no delírio de Tuco - este momento, que não julgo adequado revelar aqui, se dá de uma forma absolutamente singela e lírica, e por isso mesmo profundamente comovente.
Bem escrito, contendo ótimos personagens e pleno de amor e humanidade, "O acompanhamento" recebeu excelente versão cênica de Daniel Archangelo. Priorizando o trabalho dos intérpretes, que é o que mais importa em textos dessa natureza, o encenador criou uma dinâmica que valoriza ao extremo as sutilezas, os silêncios, os encontros e desencontros de Tuco e Sebastian, sempre valendo-se de marcas simples, mas nem por isso pouco expressivas. Afora isso, o diretor exibe o mérito suplementar de haver extraído ótimas atuações dos atores.
Na pele de Tuco, Wilmar Amaral constrói uma figura patética, impregnada de lirismo e dor, tão convincente em seus momentos de delírio quanto naqueles em que parece recuperar momentaneamente sua lucidez. Há que se destacar também sua visceral capacidade de entrega, sua ótima voz e impecável trabalho corporal. Quanto a Roberto Frota, acredito que o ator exibe aqui uma das melhores performances de sua carreira. Alternando paciência e rigor, doses equivalentes de bom senso e sincera esperança, Frota converte seu personagem na perfeita materialização da amizade - mas também julgo imperioso destacar a engraçadíssima passagem em que narra a visita de uma senhora à sua loja e que, inicialmente suave e polida, converte-se aos poucos em incontido furor.
Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta belíssima e comovente empreitada teatral - Daniel Archangelo e Wilmar Amaral (tradução), Carlos Augusto Campos (cenografia), Ricardo Rocha (figurino) e Daniel Archangelo (iluminação). "Cenografia: Carlos Augusto Campos "
Postado por Lionel Fischer.
Wilmar Amaral e Roberto Frota em cena - Rodrigo Monteiro -
“O acompanhamento”, um dos textos mais famosos do teatro argentino contemporâneo, recebe montagem bem dirigida por Daniel Archangelo, com Wilmar Amaral e Roberto Frota em ótimos trabalhos no elenco. Na montagem original, o texto escrito em 1981 por Carlos Gorostiza representava a liberdade. A Argentina da ocasião estava sob o governo de Roberto Viola, o segundo presidente da sua ditadura militar, e essa dramaturgia dava conta de disfarçar, no ambiente familiar, o estímulo à reflexão crítica ao sistema de opressão. Mais de trinta anos depois, e no Brasil, a obra adquire significados diferentes, mas não menos modestos. Com muitos méritos, esse espetáculo tocante está em cartaz no Teatro Eva Herz, na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Vale a pena ser visto!
Na história, o metalúrgico Tuco (Wilmar Amaral) abandona o emprego pouco antes de se aposentar para se dedicar à vida de sucesso que sonhou. No passado, o desejo de se tornar cantor foi enterrado depois de uma má apresentação no clube local. Na ocasião, Tuco havia tido, segundo ele, um acompanhamento aquém de suas necessidades, exigindo dele o alcance de notas que não lhe eram possíveis. O gesto de rebeldia de agora, na velhice, considerado loucura por seus familiares, foi motivado por Mingo, um amigo que lhe prometera auxílio nesse retorno. A peça começa com Tuco à espera de músicos que possam lhe oferecer um acompanhamento adequado às suas possibilidades, mas é Sebastian (Roberto Frota), um outro companheiro de juventude, quem aparece. Disposto a removê-lo de seus intentos e a fazê-lo voltar ao convívio familiar, Sebastian muda de opinião ao encontrar, em Tuco, a beleza de quem acredita que os sonhos são possíveis de se realizar. Nessa montagem de “O acompanhamento”, há a substituição das referências a Carlos Gardel (1890-1935) e ao tango argentino pela inclusão do repertório do cantor brasileiro Silvio Caldas (1908-1998), concentrando, nos movimentos da narrativa e nos diálogos, as responsabilidades pelo mérito da dramaturgia. Venceu plenamente todos os desafios. “O acompanhamento” é uma peça emocionante!
Wilmar Amaral (Tuco) e Roberto Frota (Sebastian) dão vida aos personagens com emoção. Ao interpretar o protagonista disposto a manter viva a dúvida sobre a sanidade de Tuco durante boa parte da encenação, Amaral possibilita ao público fazer a catarse, criticar-se, refletir sobre como reagiria diante daquela situação: se ao lado da família, se ao seu lado. Por outro turno, ao permitir à plateia identificar as dúvidas de consciência de seu Sebastian, Roberto Frota faz, das pausas, os convites para a reflexão sobre a humanidade. Em ambos os casos, o tom atinge a audiência dentro do melhor que esse gênero prevê, o que, além de um mérito dos trabalhos de interpretação, é, sem dúvida, um valor da direção de Daniel Archangelo. O ritmo se mantém firme, ascendente e direcionado para o ápice em uma encenação que apresenta bem as quebras e as ênfases em quadros bem articulados na narrativa em cena única.
Os bons trabalhos do elenco encontram eco na viabilização do cenário de Carlos Augusto Campos e no figurino de Ricardo Rocha. “O acompanhamento” é um drama estruturado em um visual coeso e coerente cujas marcas deixam o espectador seguro do que está vendo e assim mais aberto para a história e para se emocionar com ela.
* Postado por Rodrigo Monteiro "
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