É famosa a teoria do cineasta franco-suiço Jean-Luc Godard que todo filme deve ser assistido três vezes: a primeira para ouvir o som, a segunda para ver as imagens e a terceira para compreender genuinamente o conjunto da obra. Dominique Païni, curador ao lado de Anne Marquez da “Expo(r) Godard”, em cartaz no Oi Futuro Flamengo até 7 de julho, lembrou esta teoria nas palestras que abriram a mostra no começo de maio. E foi além:
— Vi cem vezes cada um dos filmes de Godard e seria uma pessoa muito mais infeliz se eles não existissem — revelou à uma plateia repleta de estudantes e críticos de cinema e artes, e entusiastas da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico pelo qual Godard mais é lembrado. — Mas conhecer JLG não mudou nada na minha vida. O homem em si é muito difícil, mas deve ser muito mais difícil ser ele. Ainda bem que eu não tenho nada a ver com isso.
Chegamos ao Oi Futuro para ver a mostra, que celebra os 50 anos de carreira do artista e enfatiza a produção de suas últimas três décadas — período com o qual o público brasileiro está menos familiarizado —, com este depoimento na cabeça, tentando identificar porque Païni declarou Godard como um homem difícil de se lidar. Criador da Nouvelle Vague ao lado de François Truffaut — cujos filmes “Acossado” e “Os incompreendidos” (ambos de 1959) são a gênese artística do movimento cinemtográfico —, Godard passou por várias fases. Antes de ser cineasta, foi crítico do “Cahiers du cinéma”, fundado em 1951, e vinte anos depois, já consagrado, estabeleceu-se na cidade universitária de Grenobla. Teve um lado comercial, que poucos conhecem, quando fundou, com então esposa Anne-Marie Miéville, o Ateliê Sonimage. Assinaram juntos uma série de publicidades para TV, videoclipes, trailers e filmes sob encomenda.
Na primeira sala da exposição, quatro videoprojeções são dedicadas a recortes de carreira que ilustram este período de Godard. De cara, somos interpelados pela escalafobética declaração: “Faço imagens em vez de filhos. Será por isso que sou menos humano?”. Vimos nesta sala, batizada por Païni e Anne como “Autorretratos, não autobiografias”, Godard em vários momentos: contemplativo, escrevia num quadro imaginário com o cigarro, fazendo filosófico desenho entre a fumaça e a sua sombra; deprimido, com ouvidos grudados a um radiogravador estilo boombox, respondia lobotomizado às perguntas da sobrinha (“É preciso fechar os olhos em vez de abri-los”); vidrado em um quarto de hospital, dividindo a sua atenção entre um charuto enorme e a máquina de escrever, é interrompido por um enfermeiro que precisava medir sua pressão arterial.
Em todos estes minivídeos, é possível analisar que o cineasta não quer ser analisado. E parte para arquétipos experimentalistas para ficcionar sua vida real, enquanto ela mesma não está sendo retratada ali. É uma sala de autorretratos, ou seja, como ele se vê. Não é uma autobiografia, não há a representação de sua essência, mas há, pontualmente, exemplos de sua genialidade.
Se a intenção é mergulhar mais na mente brilhante do cineasta, sugerimos os quatro minimonitores exibidos foyer do Oi Futuro. Ali, entrevistadores franceses tentam decifrar o que os filmetes da primeira sala camuflam. No segundo e terceiro andares, delicie-se com uma mesa-vitrine com um livro confeccionado manualmente pelo próprio diretor e uma edição rara da revista Cahiers du cinéma no. 300, uma miscelânea audiovisual de sua produção com Anne-Marie Miéville e mais videoprojeções.
Com certeza, uma exposição para ver três vezes. Ou cem.